segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Carta de Natal e Fim de Ano (1935)


Plínio Salgado

No ano passado, esta página trouxe uma prece de Natal, oração da Pátria Criança ao Deus Criança.
Este ano, em meio às tormentas da hora que passa, escrevo, não uma oração, mas uma carta, na qual não fala o agitador, mas o homem de pensamento, que prevê o triunfo inevitável de uma geração, cujo surto suscitou à custa dos mais tremendos sacrifícios.
Sinto hoje, mais do que nunca, a responsabilidade da obra iniciada com a melhor das intenções, obra que corre sempre o perigo de ser desvirtuada de seu recôndito sentido, pelos que, no ímpeto, no elã revolucionário, se afastarem da linha realista e firme da concepção política do Integralismo.
E não há dia melhor para que eu escreva uma carta, não propriamente às massas integralistas, porém às elites integralistas, do que este dia. Escrevo na tarde de 25 de dezembro, ainda sob a impressão das festas de Natal. É a minha epístola de Natal. Ela procura se inspirar na lição eterna que vive e palpita na História milenar dessa Vida Divina, desabrochada como uma estranha flor no estábulo de Belém, à luz misteriosa da estrela que guiou os pastores da Judeia e os remotos príncipes caldeus.
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Na madrugada de ontem, meditando sobre “isto” que tenho  feito, senti-me apreensivo. Lembrei-me de Leonardo da Vinci diante do sorriso enigmático da Gioconda, e o seu terror.  A Gioconda era bela, era incompreensível, indefinível, porém não era humana.
Examinei também a minha criação, na hora mais dramática da minha Pátria. E inquietei-me. Não temo os inimigos, nem as adversidades, porém temo os próprios integralistas. Eles, na exaltação revolucionária, poderão perder aquilo que mais procuramos, aquilo que é fundamento da nossa política: a consciência de si mesmos. E, perdendo a consciência de si mesmos, perderão o conceito da autoridade, como eu a quero, e  a concepção do Chefe, como é necessária a uma Nação Cristã.
Neste dia do Natal, volto-me para o Cristo, cuja lição de integralismo resplandece nas páginas de sua Vida, pedindo-lhe, de todo o coração, que não nos deixe afastar do conceito exato da personalidade, da concepção humana  da existência, do equilíbrio no lineamento  do Estado, da Sociedade, da Família e do Homem.
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Todo o erro dos séculos que nos antecederam foi o de uma deturpação da personalidade humana.  Uns, quiseram fazê-la tão livre, como Rousseau, que a tornaram escrava dos instintos.  Alguns, pretenderam fazê-la tão material e mecânica, segundo Karl Marx, que a tornaram escrava da coletividade e, em seguida, escrava de alguns dirigentes da massa coletiva. Outros, tornaram-na tão desencantada das belas e amáveis coisas da vida, que a defumaram, como Anatole, na salmoura da ironia. Muitos, interpretando-a segundo os profundos “spleens”, biliosas amarguras e surdas revoltas, engendraram, como Byron, a gloriosa, desdenhosa figura de Childe Harold, os rancores de Leopardi e o “De Profundis” de Oscar Wilde. Outros, ainda, pretenderam, em contraposição à pulverização marxista, às medidas liberais de Rousseau, ao gosto de fel da existência, conforme Schopenhauer, numa suprema revolta contra a mediocridade, engendrar a máxima exaltação da personalidade: é o caso das fantasias delirantes de Frederico Nietszche com seu Super-Homem.
Estes erros da concepção do Homem refletiram-se, como era fatal, na concepção da Família, da Sociedade, e do Estado. E produziram seus maléfícos efeitos, arrastando o mundo às desastrosas consequências dos dias atormentados que vivemos.
Aquilo mesmo que aparece, aos olhos de uma humanidade atônita, como reação aos cataclismos morais contemporâneos, traz, muitas vezes, no fundo, a essência de uma das numerosas expressões do erro que solapou os fundamentos cristãos da sociedade. É o caso da perigosa tendência pagã do hitlerismo, fenômeno que deve impressionar, fundamente, a consciência espiritual dos povos. A guerra às religiões, em ”estado latente”, como observa Tristão de Athayde, prestes a passar ao “estado patente” como acentua aquele  escritor católico  é uma consequência natural  do misticismo que ali se criou, sem base religiosa, isto é, misturando duas manifestações humanas diferentes, no âmbito restrito do Estado.  É a própria  concepção do Estado Totalitário, no seu máximo exagero, no estilo de Cesar: Chefe Militar, Chefe Civil e  Pontífice.  É o erro de Luiz XIV, que se transporta à apoteose napoleônica,  resplandece na filosofia  anti-cristã de Nietszche, haure energias em Frederico II e Bismarck, funde-se no espírito  da massa, na fornalha da Grande Guerra, e traduz-se na mística racista, no paganismo que, em pleno século XX arranca das cinzas do passado para atualizá-lo, o drama de Juliano, o apóstata. Já não é a volta de  Júpiter Olímpico, dos deuses meridionais; é, porém,  a volta de Odin e dos deuses que, desde  as músicas clamantes  do “Ouro do Reno”, Wagner vê no alto da montanha.
Chegará a Alemanha a essas loucuras? Não o sabemos. Apenas verificamos as consequências de um misticismo transportado do campo religioso,  onde sempre deveria estar e de onde nunca deveria sair, para  o campo das atividades políticas;  a concepção do Chefe, como um homem diferente dos outros, um semi-deus, a encarnação  de Odin, e a concepção dos seus adeptos, como seres inumanos, super-religiosos, porém que, sem um fundamento cristão sincero, ultrapassaram a linha hipócrita do velho puritanismo atingindo o outro extremo, onde a explosão de todos os recalques  acaba se manifestando como negação da própria virtude.
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Nesta  hora tormentosa para o mundo, e neste momento de tantas angústias para o meu Brasil, sinto a minha responsabilidade grave e procuro falar menos como um agitador, que tive necessidade de ser para despertar minha Pátria do que como um construtor, um homem de Estado, um embasador da Nova Nacionalidade.
Volto-me para a única “fonte de água viva”, para a “luz do mundo”, para Aquele que vivendo como um Deus a vida que só um Deus pode viver, ensinou aos homens a viver a vida de homens e deu-lhes o senso profundo da harmonia de que nos temos afastado tanto  porque de há muito perdemos todo o conceito exato, linear, perfeito da personalidade humana.
Perdendo o sentido humano da existência, temos perdido, consequentemente, o sentido da nossa finalidade. Temos misturado tudo, temos deturpado tudo, temos estabelecido tal confusão de valores, de deveres, de tarefas próprias a cada um, de modelos de vida, que nos arriscamos todos os dias a opor aos erros presentes o remédio consubstanciado em novos erros.
Nesse estado de espírito em que o mundo se encontra, é na lição de Cristo que poderemos encontrar a verdadeira linha do Estado, da Sociedade, da Família e do Homem, segundo suas finalidades próprias, seus limites próprios, sua  própria essência.
O Integralismo não quer construir o Estado Totalitário, pois quer construir o Estado Integral, o Estado Harmonioso, o Estado Imutável, na sua essência e mudável na marcha revolucionária que lhe impõe os deveres do Espírito e lhe faculta o livre-arbítrio do Espírito, que nele se reflete.
Distinguimos o campo religioso da área política. Concebemos a autoridade, não segundo o furor místico, exacerbado, doentio dos adeptos em torno do Chefe, porém, como um princípio de manutenção das estruturas orgânicas da sociedade. É no Divino Mestre que encontramos a lição admirável: a César o que é de César e a Deus o que é de Deus; sim, porque Cesar é um homem, ainda que os romanos possam acreditar na sua divindade. Daí tiramos o conceito do Estado,  os limites de sua área de ação, a natureza de sua missão.  Porque a missão do Estado não é a de Cristo, cujo reino “não é deste mundo”, porque o reino do Estado, como o império de César, é, exatamente, e somente, deste mundo.
Sendo o reino de Cesar  e do Estado, deste mundo, isso não  significa que Cesar e o Estado  se desinteressem pelo reino de Cristo, porque o reino de Cristo  é também para os  homens, e Cesar tem deveres espirituais como homem, como tem direitos como Chefe do Estado. Os direitos de Cesar, nos limites do seu Império,  são exclusivos, e  tão exclusivos, que o próprio Cristo os reconhece  e neles não interfere. É claro que Cesar não deverá passar os limites do seu Império. Quais são esses limites? Os do respeito à personalidade  humana, ao  livre arbítrio, pois este já pertence ao reino de  Cristo. E, por isso, jamais Cesar poderá  penetrar  os umbrais  da consciência de seus dirigidos, como estes jamais poderão transpor os arcanos da consciência de Cesar, pois o fundo da consciência do homem pertence exclusivamente ao reino de Deus. Por isso, jamais Cesar poderá plasmar essa consciência em seus dirigidos, conforme seus próprios desejos, como também seus dirigidos  não poderão plasmar a consciência de Cesar, pois ele, no fundo, é também humano, simples vassalo do reino de Deus,  e só ele deve saber a maneira de melhor cumprir seus deveres como vassalo.
O povo não pode ser uma criação de César, nem César uma criação do povo. Seria usurpar direitos que só pertencem a Deus. E toda vez que Cesar quer criar o Povo, fabrica  um monstro; e toda vez que o Povo quer criar Cesar engendra um Anti-Cristo.
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Daí o senso realista do Integralismo. Tem de tomar a massa na sua verdade histórica e tem de considerar os grupos naturais: a Família, a Corporação Econômica e cultural, a Nação, conforme suas essências próprias e segundo princípios eternos.
O conceito cristão da vida deve ser o dos equilíbrios perfeitos. É preciso conhecer o Homem, a argila de que é feito, a sua finalidade superior, a sua missão na terra, os seus sentimentos, a  invulnerabilidade da sua consciência, para se poder organizar o Estado isento das deturpações que lhe poderiam trazer a mística estatal,  a adoração de Cesar, o absolutismo do Gênio, o sentido exagerado das exaltações revolucionárias.
Digo estas coisas sob a impressão das minhas responsabilidades de Chefe de algumas centenas de milhares de brasileiros e sob a inspiração que me oferece o Mestre dos Mestres, do qual não devermos nos afastar. No ímpeto revolucionário com que despertei a juventude da Pátria, arrastando massas humanas, em aplausos delirantes, atrás de mim; assistindo à realização do sonho que gravei anteriormente nos meus livros, e ouvindo o rumor  de uma Nova Nacionalidade, o canto glorioso de uma geração à qual  ensinei as giestas luminosas da Primavera; e  sentindo a fascinação, o magnetismo com que  arranquei do torpor e  da mediocridade  uma geração que é a maior e a mais bela de quantas o Brasil já deu, - muitas vezes percebi o perigo que poderíamos preparar para o futuro do meu Povo e para mim próprio. Eu mesmo  poderia perder a consciência de minha da minha própria personalidade, porque me julgaria, a cada passo, diante do formidável milagre nacional do Integralismo, único na História, alguma coisa muito superior ao que realmente sou. Mas eis que, as vésperas do triunfo -  porque não duvido um só instante de que a vitória  integralista se aproxima – cai sobre mim a luz mais viva, mais penetrante, mais imprevista, iluminando-me com o  fulgor de um  raio que me mostra toda uma paisagem: sinto a humanidade de Cesar e a humanidade do Estado. Sentindo-a,  no fundo de minhas inquietações e do meu orgulho de agitador, surge uma claridade tranquila, a consciência de homem de Estado, e nessas claridades vejo a imagem d’Aquele  que nos ensina as lições da harmonia e o segredo das construções políticas, visando a felicidade possível dos homens.
Estas coisas que escrevo no dia de Natal não serão compreendidas pelos políticos liberais-democratas, pelos fúteis, pelos indiferentes; serão, porém, compreendidas por todos aqueles que têm responsabilidade no movimento Integralista e ainda por aqueles que, em nossa Pátria, estão nos combatendo, a secreto serviço dos escravizadores do Brasil e que por causa delas (estas palavras) desencadearão contra nós os seus ódios e as suas calúnias. Serão compreendidas por todos os que adoraram sinceramente o Cristo no dia de Natal. E a mocidade que se lança comigo neste ímpeto revolucionário, nesta marcha gloriosa de renovação, de arejamento dos espíritos, nesta luta inebriante porque é cheia de perigos, há de distinguir nitidamente, o pensamento mais profundo que estas linhas encerram e que eu espero possa valer um dia, aos que terão sobre si  o peso dos futuros governos da Nação Brasileira, como um aviso permanente, uma bússola segura, que evitará futuras hecatombes nacionais.

Esta é a minha carta de Natal. Só Deus sabe como a pensei, antes  de escrever. Um  dia,  ó integralistas, estas linhas poderão servir para a escolha dos Chefes futuros dos que, através deste século, continuarão a obra política que iniciei. Não sou o fundador de nenhuma religião, porém, o fundador de um Estado. E possam os meus continuadores, aos quais deverei entregar a minha construção, prosseguir nela, segundo este mesmo ritmo, esta aspiração de harmonia, este sentimento de humanidade. É preciso construir um Estado para homens e segundo as necessidades dos homens, segundo as suas finalidades, a sua natureza, os seus direitos, os seus deveres, a  sua função e as suas aspirações justas. E que o Estado e a Nação, César e o Povo, sejam recíprocos espelhos onde possam contemplar suas recíprocas virtudes e seus mútuos sonhos de grandeza e de felicidade.
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Publicado originalmente no Jornal A Offensiva em 25 de dezembro de 1935. Posteriormente publicado nos Livros Palavra Nova dos Tempos Novos (1936), A Madrugada do Espírito (1946) e O Integralismo perante a Nação (1946)
Transcrito integralmente de Palavra Nova dos Tempos Novos. 3 ª edição. São Paulo: Panorama, 1937; páginas 135 e seguintes.