quinta-feira, 24 de março de 2016

O Homo Ridibundus (excerto de Fênix e suas Cinzas) (1949)


Plínio Salgado

(...) Será um documento impressionante e trágico da nossa época a galeria dos retratos dos estadistas, dos cientistas, dos homens de negócio, dos escritores, a arreganhar os dentes em risadas nevróticas.

Nunca, em nenhum período da História, os Homens de Estado, ou as personalidades de maior projeção no seu tempo nos apresentaram seus retratos a dar risadas. Corra-se a galeria dos   generais, senadores, escritores, reis, imperadores, da Assíria, da Pérsia, do Egito, da Grécia, de Roma; percorra-se a fila dos filósofos, dos poetas, dos guerreiros, dos reis da Idade Média; examinem-se as fisionomias dos grandes vultos da Renascença, dos séculos XVII, XVIII e XIX: nenhuma estátua, pintura ou mais recentemente fotografia nos mostra essas personagens rindo.

Não estamos condenando o riso, porque em muitos casos é a expressão saudável do espírito. O riso revela os mais variados estados de alma. Manifesta-se na suavidade dos puros afetos, na irreprimível hilaridade, na fina ironia, no repulsivo sarcasmo, até na expansão do ódio e da cólera. É espelho de sentimento e revelação de temperamentos. Não é o riso, em si, que nos causa estranheza.

O que nos espanta é verificar que, no século mais trágico da história, no século em que se destrói, com uma só explosão, uma cidade inteira , como Hiroshima, e posteriormente Nagasaki; no século em que os bombardeios aéreos arrasaram monumentos e populações na Europa; no século em que mais de trinta milhões de seres humanos gemem no trabalho escravo dos campos de concentração da Rússia Soviética; no século em que a luta do homem contra o homem assumiu proporções nunca anteriormente conhecidas, seja justamente neste século que Roosevelt tenha inaugurado e os demais homens públicos e estadistas tenham adotado o costume de tirar retratos na plenitude das gargalhadas...

Os faraós do Egito costumavam mostrar-se ao povo, nas grandes solenidades, com máscaras  de ouro, onde os traços fisionômicos eram graves e sérios, como a revelar que, acima dos lineamentos humanos do rosto, devia estar a expressão da responsabilidade e do dever, inspirados num senso moral tão definido, que suas linhas não sofrem a mobilidade das paixões, antes se conservam serenas e impassíveis ainda quando o Rei, como ser humano, esteja sujeito aos impulsos de sua condição pessoal.

Depois de tantos séculos decorridos, os estadistas  riem. Riem sobre as desgraças do seu tempo.

Sim; é o Homo Ridiculus, ou o Homo Ridibundus, que se fez jogral e adotou as atitudes dos fonâmbulos e palhaços para fugir à realidade da História.(...).
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SALGADO, Plínio. O Ritmo da História. 2ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, [s.d.]. Transcrito das páginas 30 e 31.