sábado, 4 de abril de 2015

O CONCEITO CRISTÃO DE DEMOCRACIA NA OBRA DE PLÍNIO SALGADO (1995)



Euro Brandão*.

O anseio em formular e obter uma verdadeira democracia perpassa toda a vida de Plínio Salgado, seja em suas mais de sessenta obras publicadas, seja em toda a pregação que se estendeu por todo o solo da Pátria.

 É hoje frequente ouvir-se a observação de que a democracia, apesar de seus defeitos, é a melhor forma de governo. Há nisso uma grande parcela de verdade, e se dizemos parcela, é porque há democracia e democracia. Há contradições democráticas, como bem conhecemos. Até a pouco, as denominadas “democracias populares” não eram mais que férreas ditaduras do socialismo real. Há democracias que se restringem ao uso do voto universal, mas nada produzem em favor do cidadão. Muitas vezes a democracia é substituída pelo democratismo, que é uma aparência enganosa de valorização da sociedade, mas, no fundo, é uma manipulação engendrada por grupos interesseiros e beneficiários.

A vivência de cada dia se põe diante de nossos olhos, vivendo que estamos num regime dito democrático, uma interminável série de motivos de descrédito e de frustração.

Ressalta desde logo a desconexão da atuação governamental, a anteposição de grupos contraditórios dentro da mesma estrutura publica, a confusão das ideias e das diretrizes adotadas nos vários órgãos de governo, ou mesmo entre os poderes, criando-se a instabilidade e o desajuste social.

Os casos de corrupção se sucedem e, ainda que se possa admitir que seriam aqui e ali inevitáveis, é inaceitável sua quase institucionalização nos mais variados extratos de manuseio da coisa publica.

Outro aspecto ameaçador é o risco permanente de se recair numa ditadura. A História apresenta vários casos de acesso ao poder pelo voto popular, sem a existência de um substractum garantidor da índole nacional.

No Brasil tivemos recentemente esse caso estarrecedor de um presidente da republica vir a sofrer impedimento, acobertado embora pela enorme acolhida que tivera dos seus eleitores.

Cabe a pergunta: Onde está o erro? Onde fica a valorização da vida nacional? E o atendimento as necessidades essenciais das pessoas e das famílias? Onde está isso equacionado nessa conceituação democrática meramente eleitoreira?

Nos tempos de hoje a palavra democracia está assim totalmente desvirtuada, o mesmo acontecendo com a palavra amor, com a palavra liberdade, com a expressão realizar-se na vida. Por liberdade, essa valiosa e imprescindível faculdade humana, entende-se muitas vezes por liberalidade, fazer-se o que bem se entenda, sem observar os princípios éticos ou valorativos da pessoa humana.

E amor? Já não é a doação em beneficio do amado, o querer bem mesmo com sacrifício, mas o exercício do egoísmo e do prazer.

Jovens que manifestam desejo de alcançar plena realização em suas vidas, não se perguntam a razão de sua existência, mas olham apenas a posse de bens e a conquista de fama e poder.

Plínio Salgado, com seu gênio, suas meditações e estudos, com sua experiência e acuidade política, percebeu que era preciso propor uma democracia que correspondesse aos verdadeiros anseios humanos, uma democracia que servisse ao homem, de dignificá-lo, em vez de minimiza-lo, de engana-lo.

Era preciso começar pela pergunta: o que é o Homem?

Em sua obra O Conceito Cristão de Democracia, condensando o que proclamou em tantas outras oportunidades, Plínio apresenta o tema de forma lapidar.

O primeiro ponto fundamental é este questionamento básico: o homem é pura matéria, escravizado às leis determinísticas da natureza, sem perspectiva de vida transcendente? Ou admite-se que tenha alma imortal e tenha recebido potencialidades espirituais, como o livre-arbítrio, a dignidade de filho de Deus, a capacidade para o exercício das virtudes?

O materialismo (ou seja, a negação de Deus) e o agnosticismo (correspondendo à indiferença perante o problema da existência ou não de Deus) constituem opções aceitas consciente ou inconscientemente, em oposição à concepção espiritualista da vida e do mundo.

Afastada a ideia de Deus, o Homem se preocupou no século XIX, e em grande parte do nosso século, com a crença do que a Ciência, a grande conquista humana, resolveria todos os problemas da humanidade. Esse mito científico, cujo perigo alguns pensadores já haviam pressentido, encontra em Plínio Salgado um critico esclarecido.

Negada a existência de Deus e a imortalidade da alma, resta para o homem seu destino biológico. Subordinado às leis da matéria, destrói-se a noção de livre-arbítrio e, por conseguinte, o senso de responsabilidade. Fica valendo apenas o usufruto de todos os bens possíveis.

Instala-se uma grande contradição no mundo materialista. Pretensos reformadores da sociedade usam suas ideias e ideologias que, em última análise, são frutos de livre escolha, logo valores do espírito,  para pretenderem impor estruturas e soluções materialistas, logicamente desprovidas de espiritualidade!

Bem assevera Plínio Salgado: “Antes, entre a virtude e o pecado, o homem podia escolher livremente, e a isso chamavam escravidão; agora, o homem deve conformar-se com a fatalidade das condições inerentes à sua estrutura física e aos desígnios da espécie, e a isso chamam liberdade”.

Não é de se admirar, portanto, que, junto com o atual procedimento que se conhece como democracia, em todos os países onde ela é assim praticada, se instaure paralelamente o economicismo, o pansexualismo, a indisciplina, a injustiça social e a queda dos valores morais na sociedade.

Essa decadência progressiva dos valores humanos vai se processando sutilmente, não oferecendo luta aberta ao sentimento religioso, mas criando uma rede de dificuldades a que ele se desenvolva, propondo um conformismo perante a mecânica avassaladora do determinismo materialista. A pregação da transigência, do pluralismo e do modernismo, mal formulados, conduzem as mentes para o desbotamento continuado dos valores do Espírito.

Tivemos recentemente e a queda do muro de Berlim, o desmoronamento do império do materialismo declarado, e a euforia de que teremos uma era de democracia salvadora. Porém, Plínio Salgado, muito ante, já havia alertado: “Considero o materialismo nietzschiano e o marxista menos perigosos do que o agnosticismo, pois o verdadeiro materialista não é o que nega, mas o que não afirma nem nega. Aquele que nega persegue-nos, odeia-nos e mata nosso corpo; mas aquele que não nega nem afirma oferece-nos a paz e mata nossa alma”.

A organização harmônica da sociedade não dispensa a existência de um clima de elevação da alma que forneça padrões para o funcionamento adequado da estrutura social. Por isso insistiu tanto Plínio Salgado no estabelecimento de princípios que pudessem dar geração a programas de desenvolvimento e aperfeiçoamento social.

A verdadeira democracia, essa que possa ter realmente soluções para os problemas do homem e da sociedade, só pode ser decorrente de uma concepção de vida e da propugnação pela dignidade do Homem. “Qualquer sistema que seja provindo da vontade da multidão inconstante, da massa e não do povo, será joguete fácil nas mãos de quem quer explore seus instintos e impressões...” (Pio XII, citado por Plínio Salgado).

No mundo de hoje, diante da ocorrência do fenômeno da secularização, alastrou-se um processo, a ser revertido, que procura rejeitar sistematicamente o sentimento religioso na organização social, qualquer que seja a confiança de fé, notadamente a cristã, fundamento de nossa nacionalidade. A primeira consequência é que as normas éticas passam a ser meros dispositivos eventuais, estabelecidas pela moda, sejam legais, contratuais ou meramente formais. Perde-se toda a força da convicção e da motivação de natureza superior. Ora, a verdadeira moral só tem sentido se for muito mais que uma convenção ou uma ideologia, tem que ser algo vinculado substancialmente à natureza transcendente do Homem, ao sentido de sua vida que lhe deu o Criador.

Pela aceitação do materialismo prático (que pode ser, também, ter religião, mas não cumprir o que dizem professar), cabem todas as atitudes que levam às ambições e à prevalência dos instintos. No entanto, - o que vemos? -, muitos professores em suas cátedras, jornalistas em seus órgãos de comunicação, próceres políticos em seus pronunciamentos se envergonharem de testemunhar sua fé em Deus e, mais do que isso, de dar consequência efetiva, na atuação publica, de sua crença no destino eterno. E se policiam para não incorrerem no que consideram um erro: “onde já se viu misturar Deus com Política?” Seria, segundo eles, politicamente incorreto.

O resultado é a ocorrência acentuada das mazelas sociais, já que se subtrai o fundamento básico da própria existência humana. Constrói-se uma democracia para um outro ser humano, não esse que Deus criou, e a quem deus tantas potencialidades e um destino transcendente.

Como, entretanto, o sentimento do eterno é inato no Homem, diante dessas imposições da mentalidade reinante, só restam duas saídas: ou considerar a religião como algo de exclusivo foro íntimo que não deve ser levada em conta no plano político, ou, para enganar a consciência, adotar um agnosticismo vago, eivado de superstição, fantasia e misticismo inconsequente.

Isto para não falar dos que usam a religião em proveito próprio nas vésperas das eleições.

Não se aceitando a verdade provinda da Revelação Cristã, aplicando-a a realidade social, é mister adotar outro critério de certo ou errado. A democracia materialista aceita a regra da maioria. O maior número de votos tem prevalência sobre a verdade, ou melhor, passa a ser a verdade. Se a maioria votar que a soma dos quadrados dos catetos não é o quadrado da hipotenusa, isso passa a ser o correto. Assim por maioria se aprovam leis e procedimentos contrários à dignidade humana, à moral pública, e até contra a vida.

Os métodos democráticos devem ser um meio para o serviço do ser humano. Se, pelo contrario, a democracia for considerada com um fim, “em nada é diferente do conceito do Estado Totalitário, pois não vejo”, diz Plínio, “nenhuma diferença nessas duas atitudes: a de considerar o Estado tendo finalidade em si mesmo, ou considerar a democracia como fim em si própria”.

O primeiro passo essencial para uma verdadeira democracia é, portanto, estabelecer-se a que Homem essa democracia vai servir. O Homem (e, por conseguinte a Mulher, pois me refiro à Espécie Humana) é criado por Deus, à sua imagem e semelhança. Foi redimido pelo próprio Deus, por meio de Cristo, segunda pessoa da Santíssima Trindade, numa demonstração infinita de amor. É dotado de livra arbítrio e tem deveres inalienáveis estabelecidos pelo próprio Deus, donde decorrem direitos que lhe asseguram uma dignidade própria e indeclinável. Seus direitos e deveres estão acima dos ditames da ONU, ou qualquer estatuto jurídico, mas decorrem, como ensina Plínio Salgado, do próprio decálogo, ou seja, dos Mandamentos da lei de Deus. Ali está o respeito à vida, à propriedade, ao elevado relacionamento, à valorização do semelhante, à dignidade das pessoas, à preservação da Fé. Esses deveres e direitos não dependem de votações, das maiorias ou da aprovação de dignitários de nações.

Como a formação humana requer, necessariamente, um ambiente propício para desabrochar sua personalidade em clima de aconchego, ternura e compreensão, onde recebe os fundamentos de sua educação para a vida, a Família passa a ser um grupo social inerente à própria natureza humana e, portanto, anterior a qualquer prescrição legal ou política. Assim, toda a estrutura social, que não der atenção especial à Família, atenta gravemente contra a própria finalidade da estruturação da sociedade humana.

Em decorrência dessa condição, de dignidade própria, e de apoio familiar, é que se devem estabelecer os divulgados, porém nem sempre atendidos, direitos ao trabalho, à habitação, à educação, à alimentação, à justiça etc.

Acrescente-se que o ser humano é também um ser gregário, isto é, que vive em sociedade: organiza-se naturalmente em grupos que lhe dão suporte e motivação vivencial. Há então grupos naturais, como o grupo de pessoas que exercem a mesma profissão, de pessoas que pugnam pela mesma ideia política, e assim por diante. A valorização desses grupos é igualmente anterior a qualquer princípio governamental.

Por falar em governamental, é preciso determo-nos no que vem a ser Governo, bem como o que vem a ser Estado. Plínio sempre insistiu em bem caracterizar esses dois conceitos diferentes e tantas vezes misturados.

Obtida historicamente a consciência de formação de uma Nação, quando um povo se sente diferenciado em relação a outros e unido por propósitos e sentimentos semelhantes entre si, surge um novo Estado, isto é, a consciência do objetivo comum, e sua defesa, dentro de um quadro de admissão da mesma concepção do homem, do mundo, da sociedade. Ressaltam as peculiaridades do que conjuntamente se aceitam, como que no estabelecimento de uma síntese doutrinaria. Sem isso a Nação não se identifica como tal.

Já o Governo é uma consequência do Estado, que lhe é anterior. O Governo existe para dar presença física e coordenação às atividades compatíveis com as características do Estado. Exceção feita às monarquias hereditárias, cabe aí a escolha orgânica, pelos cidadãos, dos dirigentes que darão personificação à autoridade do Estado.

Fica, portanto, plenamente justificado que o exercício da democracia, no sentido de escolha dos dirigentes pelos cidadãos, é processo dependente e posterior ao planeamento de premissas básicas, estabelecidas de forma a corresponder à natureza humana e às peculiaridades da Nação e do Estado. Nenhuma democracia pode ser considerada legitima se pretender atentar contra essas premissas, ainda que lastreada em milhões de votos de apoio.

Mas – pergunta-se – como pode ter havido eventualmente milhões de votos contra a própria consciência nacional? Podem os votos contrariar a índole de uma nação?

Povo é o conjunto das pessoas conscientes de suas responsabilidades, agindo de acordo com suas convicções, comungando do sentimento nacional e expressando livremente seus anseios e esperanças.

Por outro lado, massa é a multidão momentaneamente conduzida a uma situação emocional, joguete fácil, como disse Pio XII, nas mãos de quem quer que explore seus instintos e impressões.

Várias vezes insiste Plínio nessas duas realidades. E isso porque é preciso haver mecanismos adequados para que, na democracia, se consulte o povo e não a massa.

Certamente não é povo a imensa multidão que se manifesta eleitoralmente por se ter empanturrado com um churrasco ou ter sido conquistada pela “gentileza” de uma condução para comparecer às urnas. Não resta duvida de que não é povo, o conjunto de desorientados votantes que, sem juízo formado, e diante de uma situação psicologicamente constrangedora, aceitam candidatos sobre os quais não possuem nenhuma informação confiável. Não é igualmente parte do povo, mas peça da massa, aquele que dá apoio político em troca de um interesse mesquinho ou de uma sugestão coletiva.

Esse é o grande problema, a que pouco se têm dedicado os propositores de sistemas políticos, e que, no entanto, foi a grande preocupação do grande pensador e político Plínio Salgado. Enveredou corretamente pelo insano trabalho de criar uma nova mentalidade de elevação espiritual, de responsabilidade social, de amor à Pátria, de renovação ética, de mística nacional. Propôs um corpo de doutrina, em que, valorizando o homem integral, tirava as consequências para a família, o trabalho, a propriedade, o município, a nação, o relacionamento internacional. Com isso, ficam fixadas as fontes geradoras de programas que se poderiam aplicar em cada circunstancia.

Plínio, conhecendo a psicologia do povo, serviu-se, no tempo da Ação Integralista Brasileira, de métodos de aparência externa, para motivação e convencimento popular. Essa aparência exterior, que se revelou eficaz no erguimento entusiasmado de milhões de brasileiros, era, porém, usada, de forma semelhante, por países europeus que eram ou se tornaram totalitários e guerreiros – postulando, portanto, doutrinas inteiramente divergentes do ensinamento de Plínio Salgado -, o que levou grave prejuízo ao trabalho realizado. A isso, se conjugou a implacável perseguição política da ocasião e, principalmente, a deformação das ideias propostas, por meio de uma desinformação conduzida.

Mais tarde, na retomada do imenso empenho em favor do Brasil e em outra configuração política da Nação, Plínio propôs a criação da Câmara Orgânica, um órgão técnico de assessoramento às outras casas do Congresso, com iniciativa de propor projetos de Lei. Esta Câmara seria composta por representantes diretos das categorias econômicas e culturais da nação, aperfeiçoando assim a mais sadia representatividade dos grupos naturais nos destinos do Brasil. Seria uma eleição indireta, de forma a evitar o voto inconsciente, pois as escolhas seriam feitas dentro de grupos que conheciam a atuação das pessoas mais categorizadas para atuarem plano legislativo. A rigor, essas organizações culturais e econômicas já existem, mas estão marginalizadas no processo legislativo, ou, quando endinheiradas, se transformam em grupos de pressão, sem o contrapeso de uma visão integrada dos problemas nacionais.

Toda essa cosmovisão, de Deus, do Homem, da Democracia, da legitima representatividade, ainda não encontrou a oportunidade propicia para novamente empolgar a nação.

Louvo os poderes Executivo e Legislativo de São Bento do Sapucaí pela iniciativa desta comemoração, lembrando um dos brasileiros mais ilustres, e filho desta terra abençoada. Com este evento de hoje, se está aqui levando a efeito um passo importante na educação de democracia e de brasilidade. Daqui poderá ressurgir, um dia, a grande marcha do futuro.

Diz Plínio Salgado em O Ritmo da Historia: “A manutenção de todas essas expressões de liberdade humana exige virtudes dos cidadãos. Essas virtudes são as que se contrapõe às leis do instinto, que é injusto e cruel. Cumpre, pois, como único meio de realizar-se o regime democrático, uma larga e profunda obra de educação para a Democracia”.

Deus, porém, dirige os destinos dos povos e, se essa for sua soberana vontade, saberá prover condições para que os brasileiros, que sonham com a Grande Pátria, há tenham um dia luminosa e feliz.

(Este trabalho, por razões de saúde de seu Autor, foi lido por Gumercindo Rocha Dorea, no início das Comemorações do Centenário de Plínio Salgado, em 21 de Janeiro de 1995, no Espaço Cultural “Plínio Salgado”, em São Bento do Sapucaí  - SP).


Publicado originalmente nos “Anais do Centenário e da  Segunda Semana Plínio Salgado”. São Paulo/São Bento do Sapucaí: Edições GRD/Espaço Cultural Plínio Salgado, 1996; transcrito integralmente da página 7 até a 17.


*   ∑. Euro Brandão (1924 – 2000). Foi engenheiro, professor, Magnífico Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Ministro da Educação.

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