quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Epístola ao paganismo que se apelida Cristão (Natal de 1953)

Dedicatória de Plínio Salgado a Antonio Salem (antigo membro da Câmara dos Quarenta da Acção Integralista Brasileira)

Plínio Salgado

Homens e mulheres do Ocidente, adeptos de todas as crenças que se dizem cristãs, frequentadores das igrejas católicas e das igrejas ortodoxas, anglicanas, metodistas, presbiterianas, batistas, evangélicas e quantas mais vieram da Reforma, e ainda outras que, sob os prismas mais diversos, inspiram-se em Cristo nestes tempos calamitosos; ouvi a palavra do Dr. E. W. Emgstrom, vice-presidente da “Radio Corporation of America”.

Nenhuma ocasião é mais propícia a essa palavra do que a noite em que celebrais, segundo os vossos costumes, com presépios ou árvores resplandecentes de lantejoulas, com  as mercearias iluminadas e pejadas de nozes, castanhas, figos e uvas, e vinhos de todas as qualidades, o aniversário do nascimento de Jesus Cristo. Não importa que o Dr. Emgstrom haja falado no curso do ano que finda. As suas palavras ganham oportunidade à passagem deste Natal. O que ele diz tem grande importância para a mitologia dos tempos modernos. Ele anuncia mais um deus ao politeísmo do século XX, tão rico em divindades novas e prestigiosas.

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O Dr. Emgstrom revela que a ciência e a técnica, à maneira de Erebo e da Noite, os dois filhos do Caos, depois de terem engendrado os vossos deuses-máquinas, esses deuses que se chamam o automóvel, o avião, o rádio, o calculador automático, o radar, o submarino, a bomba atômica, acaba de inventar um engenho eletrônico, dotado de pensamento e inteligência e capaz de sentir e reagir... E afirma, categoricamente: “O homem poderá construir, em sistemas eletrônicos, uma máquina capaz de o substituir".

Em seguida, prevendo o susto que vos assaltaria, ao imaginar que essa máquina, fabricada em série pelo Capitalismo Burguês ou pelo Estado Socialista, iria tornar-vos seres inúteis ou muito mais dispendiosos ou inconvenientes, o Vice-Presidente da “Radio Corporation of America” acrescenta:

“Entretanto, o que os eletrônicos podem executar tem um limite, embora ainda muito distante para ser conhecido presentemente. A mente humana, ao contrário, não tem limites e sendo o seu poder criador fundamental, o Homem continuará a ser sempre supremo, isto é, superior à máquina raciocinante”.

Confesso, homens e mulheres que vos dizeis cristão em nosso século, confesso não ter sentido nas palavras do grande técnico nenhuma consolação e tranquilidade. E isso porque observo, nestes últimos anos, um fato que ninguém pode contestar: enquanto as máquinas de ferro e de outros metais tendem a humanizar-se, executando os atos do Homem, o Homem tende a maquinizar-se, não somente se submetendo ao ritmo dos engenhos mecânicos e elétricos por ele próprio engendrados, mas, ainda, procurando conformar-se a sistemas de movimentos e de ações que anulam o potencial da sua personalidade. A máquina quer ser gente; o Ser Humano quer ser máquina.

Já não falo do ritmo do trabalho que se convencionou chamar racionalizado, mediante o qual a especialização reduz a Criatura de Deus aos limites de um isocronismo exasperante e aos acanhados espaços de funções restritas onde morre toda a possibilidade do poder inventivo. Já não falo do rebaixamento da pessoa humana reduzida a só mover uma determinada alavanca, ou a ligar e desligar uma corrente elétrica, ou a limar parafusos, ou a polir cilindros, ou a abrir roscas em porcas metálicas. Já não falo no automatismo das mãos conformadas à cadência do aparelho, como observou Gheorghiu no seu livro “A Vigésima Quinta Hora”.

Falo da mecanização crescente da vida social. Falo dos regimes políticos onde o Homem se torna peça na grande máquina do Estado. Falo nas planificações econômicas (é preciso distinguir planificação de planejamento), as quais fazem do Ser Humano um zero, enfileirado com outros zeros, cujo conjunto, à direita do algarismo significativo do Poder, eleva o potencial deste e em consequência sua maior tirania. Falo da concepção econômica da História e dos processos sociais, o que transforma os povos e os indivíduos em comunidades sem espírito e seres sem alma, submetendo-os aos impositivos  de irrevogável determinismo. Falo da concepção mecânica da inteligência, medida, pesada e contada pelo artifício dos “tests”, com abstração total da misteriosa complexidade e dos dificilmente reveláveis segredos da personalidade. Falo dos sistemas de fichas, a que todos se submetem, desde a ficha dactiloscópica à ficha nas policias, à ficha nos hotéis, à ficha nos bancos, à ficha profissional, que trazem o Rei da Criação perenemente vigiado, inquirido, suspeitado, humilhado. Falo dos mil impostos que os Governos cobram e através dos quais à vida do contribuinte é devassada, vasculhada, até mesmo o seu pudor domiciliar. Falo da psicanálise, essa nova superstição dos tempos modernos, que não respeita os sagrados recessos da alma humana, ultrapassando as fronteiras as dignidade e atentando contra as prerrogativas do Homem outorgadas por Deus. Falos dos modernos processos dos inquisitórios adotados na Rússia, com aplicação de drogas, como a mescalina, desintegradora da personalidade. Falo na substituição da “qualidade” pela “quantidade” no que concerne aos meios de representação nacional e eleição de governantes, o que transforma os povos conscientes em massas inconscientes, despidas de raciocínio e tangidas em grandes movimentos de rebanhos pelos detentores das máquinas de propaganda. Falo da ação mecanizadora da imprensa, do rádio, da televisão, do cinema,  que plasmam, um por um dos leitores, dos ouvintes, dos tele ouvintes, dos espectadores, uniformizando-os em opiniões, em gostos,  em comportamento, e fabricando com a matéria prima de seres personalizados, infindáveis séries de tipos “standard”, com idênticas atitudes, idênticas palavras, idênticos hábitos. Falo do critério exclusivamente funcional na arquitetura, que fez das casas do Homem simples máquinas de morar, destruindo toda a possibilidade do chefe e da mãe de família no sentido de imprimirem caráter próprio ao lar doméstico; ver um apartamento é ver todos: são caixas onde se guardam os “robots” que durante o dia executam as mesmas coisas que os outros “robots” executam. Falo dos excessos da interpretação social mediante os frios algarismos das estatísticas que consideram meros problemas matemáticos os dramas humanos mais pungentes e tiram conclusões do geral para o particular, conformando os mais variados e complexos, os mais típicos e específicos índices psicológicos pessoais ou grupais,  à teoria dos inexpressivos recenseamentos como uma terraplanagem de relevos característicos do solo.

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Uma voz denunciou ao mundo o perigo que representa esta tendência para a mecanização do Homem e da Sociedade. Foi Pio XII na sua Mensagem de Natal no ano passado. Impressionou-o o despotismo da Máquina sobre o Homem. “Esta incapacidade de dominar a máquina” – diz o Sumo Pontífice – “deveria sugerir aos homens, suas vítimas, a certeza de que não podem esperar a salvação unicamente dos técnicos da produção e organização”. Mais adiante, criticando as falsas teorias, que pretendem solucionar os problemas sociais e econômicos “mediante uma organização rigorosamente uniforme e inflexível”, Pio XII diz: “Pretender a salvação de fórmulas rígidas, aplicadas materialmente à ordem social, é uma superstição, porque é atribuir a essas fórmulas um poder prodigioso, que elas não têm”.

Mas vós, homens e mulheres do século XX, e particularmente homens e mulheres da Europa Ocidental e das Américas, que vos dizeis cristãos, nada quereis compreender. Servis a dois senhores, a Cristo e a Mamon. Dizeis que estais integrados no Reino de Deus, mas viveis segundo o Reino de Satã, o destruidor da personalidade humana. Aceitais todas as superstições contemporâneas. Criastes a Máquina mas em vez de dominá-la sois dominados por ela. O Comunismo Russo e o Capitalismo Ocidental, que são uma e a mesma coisa, pelas suas origens materialistas e seus objetivos exclusivamente temporais, impuseram-vos a adoração de novos deuses de aço. Esses deuses são mais perversos do que o das mitologias egípcia, assírio-babilônica, greco-romana, pois Osíris, Isis, Hórus, Anúbis, e Melkart, Ormuz, Bel-Marduk, e Júpiter, Saturno, Dionísio, Apolo, Vênus, esses pelo menos falavam de uma vida além dos limites deste mundo, ao passo que o deus Cadilac, o deu Douglas, o deus T.S.F., o deus Nautilus, o deus TV, e mil outros de aço que adorais, só vos falam da vida deste mundo. Os pagãos antigos eram mais dignos, porque não perdiam as prerrogativas de Seres Humanos; mas vós não só adorais, mas imitais os deuses-máquinas, conformai-vos ao seu ritmo, e pretendeis transformar a ordem social, a ordem política, a ordem econômica, a ordem moral em imensos maquinismos, onde não passais de peças e onde impera a cadência do todo em que vos integrais.

Tendes ainda uma inferioridade em face dos pagãos anteriores a Cristo. É que eles não tinham recebido a luz da Verdade, que vós recebestes há dois mil anos. Eles não tinham o que hoje tendes: a Redenção cujo preço foi o sangue de Cristo. Eles não haviam recebido a doutrina do Evangelho e vós a tendes recebido há vinte séculos.

O vosso castigo há de ser – se não vos modificardes – o Frankstein de que vos fala o Dr. Emgstrom. Ele irá tomar o vosso lugar. Seres despedidos pelo Comunismo ou pelo Capitalismo, os dois monstros do Apocalipse.

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Sob o critério materialista, a Máquina, é, em tudo, superior a vós. Em 1931, escrevi estas palavras que depois foram enfeixadas nos livros “O Sofrimento Universal” e “Madrugada do Espírito”:

“O monstro de aço conquistou mais do que a igualdade, a superioridade social sobre o homem. A máquina não tem pais e nem gera filhos; não vibra de afetos; não alimenta aspirações; não cultiva a moralidade. É, portanto, muito mais conveniente ao capitalismo universal. E é por isso que o Capitalismo quer arrancar do Homem os últimos resíduos espirituais, para que a massa proletária se transforme também num sistema de maquinismo...”.

E considerava: “O instinto da máquina vai avassalando tudo. A máquina exige que se modelem coletividades de movimentos automáticos, de formas geométricas precisas e cadências uniformes. Essas coletividades devem cristalizar-se nos fornos das necessidades, que irão obrigando cada tipo isolado a se acomodar ao grande ritmo cujo sentido é a mecanização total da existência. É a redução ao inanimado. A racionalização desracionalizante. O homem tipo como a máquina-tipo. O trabalho-mercadoria como o Quilowatt-hora. O índice de caloria dos combustíveis. O trabalho como finalidade do trabalho. A morte total do espírito”.

“O Homem inventou a máquina; a máquina agora, quer fabricar homens. E se um dia saírem homens das usinas, também os úteros das mulheres gerarão homens-máquinas, sem coração, sem afeto”.

Essas palavras foram escritas em 1931. E agora dois fatos as comprovam, neste 1953. O dr. Emgstrom anuncia o advento do Frankstein eletrônico. E as estatísticas revelam o número de crianças nascidas de inseminação artificial, pois nos Estados Unidos se marcha para a fabricação de homens de laboratório, cuja composição exige apenas a mulher como receptáculo de um sêmen anônimo, provindo do caos coletivo, sem história, sem relação com o sentimento em que se sublima, para honra da Espécie, o impulso sexual.

E, assim, homens e mulheres adoradores da Máquina, que vos dizeis cristãos e festejais o Natal Daquele que veio ao mundo para redimir o Ser Humano e dar-lhe noção de sua grandeza pessoal, esta mensagem que vos envio está cheia de dor dos que ainda pensam e raciocinam quando a maior parte de seus semelhantes abdicou as altas prerrogativas que Deus lhes havia outorgado. E essa dor, que se apura no fogo das meditações, eleva-se aos Céus em forma de prece, rogando ao Cristo, cujo nascimento comemoramos, que nos ajude, neste século, a libertar-nos da escravidão a que nos temos submetido, a fim de que nos arranquemos do pior dos paganismos que aterra já conheceu, e possamos, restaurando a Personalidade Humana, servirmos a um só Senhor e Deus, conforme nos ensinou o mesmo Jesus Cristo, ao dizer-nos que, para pertencermos ao seu Reino, cumpre-nos repudiar a Mamon, senhor do dinheiro e senhor das máquinas, escravizador e automatizador dos ritmos sociais em que se anulam os ritmos próprios de cada homem e de cada mulher, quando se esquecem da nobreza da sua origem e da glória de sua finalidade suprema.

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SALGADO, Plínio. A Tua Cruz, Senhor... Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1954. Transcrito das páginas 115 até 124.

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